Em muitos aspectos, o futuro do varejo brasileiro já acontece hoje no mercado indiano. Vale a pena conhecer mais de perto

Um país com mais de 7 vezes a população do Brasil, 20% da população do mundo e o quinto maior PIB do planeta. Uma nação complexa, com um potencial incrível: 65% da população tem menos de 35 anos e a classe média soma 432 milhões de pessoas, com previsão de atingir 715 milhões em 2031. Essa é a Índia, país que visitei recentemente com o objetivo de conhecer a cultura, os negócios, as inovações tecnológicas e o varejo.

Também se trata de um lugar de profundas desigualdades. Atualmente, 360 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e 10% da população concentram 77% da riqueza. Olhando mais para o topo da pirâmide, apenas 7% das pessoas têm carros e 1% paga Imposto de Renda.

Com uma população majoritariamente rural, com grandes deficiências e limitações em infraestrutura e acesso a bens e serviços, a Índia lembra, em muitos pontos, a China de 20 anos atrás. Considerando que o país é o de maior crescimento no mundo atualmente e que projeções apontam que 25% da mão de obra do mundo virá de lá na próxima década, é bom estar muito atento.

Depois de passar 10 dias no país em 4 cidades diferentes, conhecendo hubs de inovação, empresas de vários segmentos e entrando em contato com o varejo local, pude entender um pouco melhor as culturas locais (sim, no plural, pois o país é diverso demais para falarmos em uma única cultura). E o fato é que a Índia traz grandes lições para quem quer pensar a inovação – e, quem sabe, estar à frente nas próximas disrupções. 

Alguns destes insights poderiam ser usados para pensarmos no Brasil que queremos ser. Outros, para preparar nossos negócios para o que vem por aí. O fato é que não passaremos imunes pela “onda indiana” que está vindo.

1. Aprender a viver no caos

A Índia conta com 23 idiomas oficiais e mais de mil dialetos. Como 64% da população vive no campo, a diversidade cultural se torna ainda maior. Apenas 14% dos indianos são muçulmanos, 80% da população é hinduísta – temos um imenso caldo religioso, além de tudo.

Organizar a administração de um lugar tão diverso, sem dar muito espaço para que interesses regionais gerem guerras civis, é um desafio incrível. O mesmo vale para os negócios: o que funciona em uma região não faz nenhum sentido em outra. É preciso ter muita flexibilidade e uma capacidade enorme de agir rapidamente em um ambiente caótico.

O indiano é um resiliente, acima de tudo. O caos é seu habitat. Não existem certezas absolutas, nem verdades eternas (a não ser o conceito que cada religião tem do Paraíso). Notamos uma tranquilidade no caos, uma certa anarquia funcional, principalmente nas grandes cidades.

2. O Estado organizador

Procurando dar alguma ordem a esse caos, o governo indiano adota uma postura que lembra os chineses: controlar e organizar os esforços para colocar esse imenso transatlântico na direção correta, com a diferença de estarmos na maior democracia do mundo.

Tanto na China quanto na Índia, tem ficado claro que o “Estado organizador” dá certo. O governo define as prioridades, organiza a agenda e dá espaço para que empreendedores façam acontecer.

No caso indiano, grandes grupos multissetoriais se desenvolveram. Nomes como Tata (responsável por 4% do PIB do país), Aditya Birla, Reliance e Adani Group se fazem presentes em inúmeros momentos na vida das pessoas. De certa forma, lembra o modelo japonês e coreano de conglomerados industriais, mas agora avançando sobre tecnologia, serviços e varejo.

Importante destacar que o Estado organiza as prioridades, mas não se propõe a ser o administrador de tudo. Existe um amplo espaço para o empreendedorismo, como mostra o varejo local: altamente descentralizado, formado por pequenas operações independentes.

3. Um varejo bem diferente

Falando em varejo, a Índia possui características muito próprias. Nos anos 2000, uma lei definiu que empresas internacionais que vendem produtos de múltiplas marcas (como é o caso de supermercados, farmácias, lojas de materiais de construção e eletrodomésticos) precisam ter um sócio local com pelo menos 49% de participação. ( No passado o sócio local precisa ter o controle da operação 51% ).

Ao mesmo tempo em que permitiu a entrada de conceitos modernos de varejo, esse arranjo viabilizou o crescimento de grandes conglomerados. O maior exemplo é a Reliance Retail, um gigante com 245 mil funcionários, 18 mil lojas e um valor de mercado de US$ 100 bilhões.

Por outro lado, o mercado é grande a ponto de permitir (especialmente nas zonas rurais) a existência de modelos pré-modernos de varejo, como pequenos minimercados “moms and pops” sem gestão informatizada, sem controles avançados e uma administração na base do “o olho do dono engorda o gado”. Esse modelo representa 85% do varejo local.

O varejo indiano passará por profundas mudanças nos próximos anos, seja pela aproximação entre grandes grupos e negócios independentes, viabilizando o acesso a conceitos modernos de gestão; ou mesmo pelo crescimento do varejo digital. Que é nosso próximo insight.

4. Um tsunami se aproxima

Se a presença de conceitos modernos de varejo ainda é tímida na Índia, o digital está em sua infância. O que não significa que o volume movimentado seja pequeno, bem pelo contrário. 

Somente o mercado de quick commerce (entregas em até 10 minutos em grandes centros urbanos) saiu do zero para US$ 5 bilhões nos últimos 3 anos. Hoje, 80% da população tem acesso a internet banda larga e 640 milhões de indianos fazem compras online, em 75% dos casos por meio do celular.

E há mais: os marketplaces vêm se apresentando como os formadores do varejo digital indiano. Tanto por meio de players horizontais (como Flipkart e Amazon) quanto verticais (Big Basket, Myntra), o varejo online vem crescendo de forma intensa.

Estimativas apontam que, entre 2022 e 2025, o varejo online indiano crescerá em média 22,7% ao ano, o dobro da média mundial. Essa expansão acelerada abre oportunidades para players estrangeiros e pode ser uma oportunidade para que empresas brasileiras façam o cross border “daqui para lá”, internacionalizando seus negócios.

5. Dinheiro? Cartão? Não conheço

Como na China, a Índia fez o salto direto do analógico para o mobile, inclusive nos meios de pagamento. O país foi pioneiro nos meios instantâneos, criando a UPI (United Payment Interface) em 2016. O modelo foi a inspiração para o nosso Pix – e o seu sucesso também é inegável.

Com 900 milhões de usuários ativos, a UPI processa 10 bilhões de transações por mês e responde por 68% dos pagamentos digitais que ocorrem no país. A Índia, por sinal, corresponde a 46% do mercado global de pagamentos digitais, movimentando US$ 250 bilhões em agosto de 2024.

6. A casa do WhatsApp

Assim como acontece com os meios de pagamento, a Índia é a principal referência mundial no conversational commerce. Com a maior base de usuários de WhatsApp do planeta (500 milhões de pessoas), o país tem uma jornada digital de compras única, em que o “Zap” é usado como browser.

Quando se fala em conversational commerce, o que no mercado americano é considerado sonho já acontece na Índia. As pessoas usam o WhatsApp como o início da jornada, dialogando com as marcas (a partir de muita automação e Inteligência Artificial) para tomar as decisões de compra. A escala dessas operações é brutal para os nossos parâmetros e, sem dúvida, revela a transformação possível quando o consumidor tem o app como sua porta de entrada para o varejo.

As consequências podem ser devastadoras para varejistas que não estiverem presentes no WhatsApp e não conseguirem dialogar em escala, de forma fluida, com os consumidores. A IA Generativa tem um papel enorme nessa transformação do varejo – uma transformação que, no Brasil, ainda está em seus passos iniciais, mas que na Índia é o dia a dia de milhões de clientes.

O varejo indiano é complexo, profundamente contraditório na polarização entre tradicional e moderno, e altamente digitalizado nos centros urbanos. Um país que oferece oportunidades incríveis para entendermos o impacto da tecnologia sobre os meios de pagamento, as jornadas de compra e a fidelização dos consumidores.

E, com certeza, um prenúncio do que passaremos a ver em grande escala no Brasil e em outros países em desenvolvimento nos próximos anos.

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