
Por Letícia Lage, Venture Capitalist na HiPartners
Há seis meses, embarquei para o Vale do Silício em uma missão para entender de perto o ecossistema de startups mais vibrante do mundo. Nesse texto, trago uma reflexão sobre as mudanças 360º que tive na minha perspectiva sobre inovação, venture capital, mercado atual e o futuro da tecnologia
- Choque de Cultura: A mentalidade do Vale
O primeiro impacto ao chegar no Vale é perceber o quão rápido as coisas acontecem. Podemos enxergar a cultura do reinvestimento correndo nas veias dos investidores, founders e Big Techs. Talvez seja por isso que vemos tantos deals e uma quantidade de dinheiro enorme percorrendo as esquinas da Sand Hill Road (casa dos maiores VCs do mundo – Sequoia Capital, a16z, Kleiner Perkins, Benchmark Capital e outros) há tantos anos.
Lá você consegue entender que a cultura do investimento não deveria ser um jogo onde uma parte pensa que a contraparte está tirando vantagem, e sim, um jogo de reciprocidade, onde no futuro a sua investida pode ser o seu novo investidor – ou talvez o contrário. No Vale, podemos ver isso desde do início da sua história com o Fairchild Semiconductors (vale a pena pesquisar para quem quer aprofundar no tema).
As pessoas respiram inovação, testam hipóteses sem medo de errar e buscam soluções escaláveis desde o primeiro dia. Isso me fez pensar: porque não podemos acelerar a adoção desse mindset aqui no Brasil? Precisamos começar a pensar em como dar e receber investimentos – de qualquer natureza – sem esperar nada em troca.
- O jogo de Fundraising nos últimos anos direto da fonte
É importante relembrar qual é o conceito do termo Venture Capital para a gente começar a discutir os números e o cenário que “assombra” o mercado nos últimos 2 anos: Capital de Risco investido em um projeto no qual existe um elemento substancial de risco, normalmente um negócio novo ou em expansão.
Na minha opinião, levantar capital deveria ser tratado igual a um esporte: precisa de treino, repetição. Ter um “treinador” deveria ser obrigatório e você vai falhar várias vezes até a vitória. Hoje em dia, estamos vendo um mercado mais rígido, investidores mais criteriosos, investimentos cada vez mais polarizados e o hype deu lugar a um olhar mais pragmático para a sustentabilidade financeira. O que torna, assim como no esporte, um mercado cada vez mais desafiador.
Porém, é necessário saber surfar as ondas e entender que tem muita quadra vazia para jogar. Ainda existe muito dinheiro para ser investido (hoje temos quase US$300bi de dry powder no mercado global) e essa rigidez não se aplica proporcionalmente aos investimentos em novas tecnologias – como eu falei, os investimentos estão polarizados (se beneficie disso).
Por último, vou passar um panorama que exploramos muito durante a estadia no Vale para servir de reflexão para quem quer jogar esse jogo:
- Em 2021 tínhamos múltiplos, marcando companhias a 15x-20x ARR (liquidez enorme do mercado). Hoje em dia, é comum ver companhias sendo marcadas de 3x-7x ARR;
- Startups da Bay Area captaram US$ 90bi em investimentos de Venture Capital em 2024. Os Estados Unidos, como um todo, receberam 57%, mais da metade dos dólares globais destinados a esse tipo de investimento. Já no Brasil, foram investidos apenas R$1.5bi em 2024 (~1,6% do Vale). A diferença é muito brutal, mas eu sigo otimista com o futuro, afinal estamos na era da IA, não é mesmo?
- IA – como devemos nos posicionar nesse mercado (como investidores e founders)
Nesse tópico acho que vale ser straight to the point e passar rapidamente pelo panorama antes de entrar em posicionamento:
- O mercado de IA vem crescendo exponencialmente, aumentando 5x mesmo com toda crise do mercado de Venture Capital;
- Em 2023, foram investidos US$21bi em 426 rodadas de empresas relacionadas à inteligência artificial, já em 2024 tivemos US$131bi investidos no setor;
- Grande parte das rodadas foi destinada a infraestrutura, atrelada a Big Techs como Microsoft, Google e Meta, que estão investindo em seus modelos proprietários.
Dessa forma, diante desse cenário: será que as empresas de IA realmente possuem diferencial competitivo sustentável no longo prazo?
Tem quem fale que, diferente do Metaverso que vimos em 2020/2021, a Inteligência Artificial proporciona uma diferenciação relevante, mas, por outro lado, escutamos também que as barreiras de entrada são baixíssimas e que startups podem ser facilmente copiadas (recentemente vimos o case da DeepSeek batendo de frente com a OpenAI). Ferramentas de no-code/low-code, além da utilização do ChatGPT para gerar códigos, diminuem o atrito entre a ideia e a execução de uma startup.
No final das contas, precisamos saber diferenciar companhias que são:
- Nativa em IA: IA como produto principal, IA desenvolvida internamente
- Impulsionada por IA: O produto principal não é IA, mas possui funcionalidades impulsionadas por IA
- Conversão para IA: IA incorporada após o desenvolvimento – extensão do produto em busca de evolução tecnológica e diferenciação
Há uma diferença muito grande em criar modelos de negócios inovadores que não funcionariam sem a existência de IA e criar modelos de negócios que são apenas catalizados com o uso dela. A vantagem competitiva é sustentada pelas escolhas que uma empresa faz.
Esse tópico foi explorado de uma forma muito mais complexa durante a minha estadia no Vale. Caso você queira aprofundar e entender mais sobre como a infraestrutura e modelos influenciam a vantagem competitiva dentro de uma empresa de IA, recomendo ler o artigo do meu amigo Rafael Barreira, que também esteve comigo durante essa experiência.
- Mudanças no meu Trabalho e na minha forma de pensar
Todo investidor e founder, se tiver a oportunidade, deveria passar um tempo no Vale. Parece clichê, mas acredito que poder mergulhar nesse mundo me fez entender quais são os principais objetivos da minha posição como Venture Capitalist e qual o meu propósito diante dos mais de 500 founders que eu conversei nesses últimos 2 anos.
Nosso modus operandi vai muito além de entender timing de mercado, escalabilidade, product market-fit, competitividade, etc. Precisamos colocar em análise que estamos fomentando uma cultura que vai mudar a forma como resolvemos problemas e como vivemos nosso dia-a-dia. A HiPartners tem uma tese bem nichada e nosso objetivo aqui é um pouco maior do que tudo isso – queremos mudar a realidade do varejo no Brasil e a forma como o consumidor tem a sua experiência na ponta.
- Capital, Talento, Clientes, Excelência Universitária, Qualidade de Vida e Cultura Empreendedora: o Vale continua sendo líder a cada novo ciclo computacional
Por fim, o choque de cultura foi real: velocidade absurda, mentalidade de reinvestimento e um jogo de longo prazo onde todo mundo entende que, hoje investidor, amanhã founder ou talvez hoje founder, amanhã investidor. Fundraising virou um esporte de alto rendimento, e a IA segue sendo o campo de batalha mais quente – mas nem todo mundo que joga está construindo algo realmente sustentável. A pergunta é: estamos prontos para jogar?
- Como o mercado vem se movimentando em 2025
O ano de 2025 começou agitado – tanto lá no Vale quanto aqui no Brasil. Depois de mostrar todo esse cenário e provocar a reflexão se você está no caminho certo como founder e investidor, vale trazer um overview de quais são os principais acontecimentos dos últimos meses (e fica a seu critério avaliar os pontos positivos e negativos de cada notícia):
- A gigante de pagamentos Stripe anunciou uma nova oferta de ações para funcionários, avaliando a empresa em US$91,5 bilhões. Na minha visão, esse movimento destaca a divisão de sentimentos no mundo de VC com otimistas prevendo crescimento paciente em direção às metas de valuation e pessimistas alertando sobre investimentos insustentáveis sem retornos concretos;
- A Klarna, startup sueca de “buy now pay later” (BNPL), entrou com um pedido para abrir capital na Bolsa de Nova York. A fintech busca um valuation em torno de US$15 bilhões, bem abaixo da última rodada da companhia. Esse IPO vem na esteira de parcerias estratégicas, como a recente exclusividade com o Walmart (tirando a Affirm da jogada) e a integração com o DoorDash;
- O Google anunciou a aquisição da Wiz por US$32 bilhões. Se aprovada, vai ser a maior compra da história do Google e o 6° maior M&A de tech (32x ARR). Com essa operação, o Google reforça sua posição no mercado de computação em nuvem (principalmente com IA em jogo), competindo diretamente com AWS e Microsoft;
- No Brasil, tivemos investimentos marcantes como o aporte da Sequoia de US$5,5MM na Enter – primeiro investimento do fundo no Brasil depois do NuBank – o que reforça os olhares dos investidores para o nosso país.
Além disso, voltando um pouco para o ano passado, em 2024 tivemos pelo menos 5 novos fundos globais investindo pela primeira vez em startups brasileiras.
Seis meses após essa imersão no Vale, volto com a certeza de que o jogo mudou – e continua mudando. Fundraising se tornou um esporte de alta performance, inovação deixou de ser buzzword para virar prática diária, e a IA, com todas as suas nuances, se consolidou como a arena onde os próximos gigantes serão formados. Mas, mais do que entender tendências, essa experiência me fez repensar como queremos construir o ecossistema aqui no Brasil.
A pergunta que deixo não é se ainda dá para jogar o jogo. A pergunta é: que tipo de jogador você quer ser? Porque o campo está aberto, o capital existe, a tecnologia está acessível – e o mindset certo pode ser o diferencial entre apenas participar e realmente transformar.
Nos vemos em campo.
Letícia Lage é Venture Capitalist na HiPartners, o primeiro Venture Capital brasileiro focado em Retail Techs, cuja comunidade de investidores, em sua maioria formada por players do setor, tem alavancado investimento para inovação em soluções que gerem impacto e resultado para o Varejo do Brasil e da América Latina. Graduada em Administração pela Link School of Business, vem somando experiências no ecossistema de startups e investimentos através das suas imersões na Tel Aviv University e na China. Está dedicada à construção das teses, originação, análises e acompanhamento das investidas.
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